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05/07/2010

A Velha Máquina de Escrever

Com minha velha máquina de escrever, olho na janela o sol quebrar a cortina com sua luz diáfana, amarelada e empoeirada. Carros e pessoas se misturam ao som vulgar que enlouquece a minha insensata agonia de existir num mundo que nunca (e nem pensando que vai) existiu. Sou a própria angústia rastejante de minha insígnia branca, de pele quase cinzenta: um morto-vivo! Não respiro. Corro de minha cama! Quero ficar em silêncio para que não me achem dentro do meu guarda-roupas... Converso com meu terno velho e lhe pergunto por quanto tempo ele caminhou comigo nas ruas dessa cidade diabolicamente construída para ostentar porcos poderosos em seus tronos entalhados por falsos querubins. Sinto falta de ar, quero embriagar-me de luxúria nos seios de uma mulher! Quero sentir meus pés flutuarem enquanto piso firme para desfazer uma dormência. Volto para a janela. O dia vai se despedindo triste e maculado por todos os seres viventes (do ácaro ao elefante!). Vivo no subterrâneo de meus sentimentos obscuros e frágeis. Uma xícara de café.... um gole de conhaque... a máquina de escrever... fuga para a insanidade metafísica da criação. Deus, o Criador, foi o louco mais perfeito! Ele quem fez todos os loucos & programou todas as loucuras da humanidade & pôs à prova os loucos, sabendo que o mundo se tornaria o maior hospício do cosmos. A velha máquina de escrever me faz um deus! Sento-me em minha cama, esmago como um elefante milhões de ácaros que se alimentam de minha carne podre durante minhas viagens oníricas e crio um novo mundo!

São Gonçalo, 2006.

2 comentários:

Mensageiro Obscuro disse...

Esse texto é muito interessante, não sei se é crônica ou prosa poética. Gosto de máquinas de escrever, não dependem de luz elétrica, talvez um dia eu compre uma para mim, deve ser caro, mas vale a pena. Aprecio muito o onirismo e a fantasia, todas as aventuras que extraio daqueles campos etéreos me levam a ser um artista, certamente sem aprofundar-me nesse abismo de mistérios e segredos eu seria mais um Zé.
Identifiquei-me com a expressividade dessa obra e gostei muito, valeu a pena ler palavra por palavra, linha por linha.

michelle disse...

É uma crônica! Pelas características do texto (bem reflexivo,intimista,com um tom de crítica, sem deixar de ser poético, remetendo-se ao sonho e à fantasia, por meio da recriação do mundo- o mundo visto pelo olhar de um poeta, que deseja reinventar a própria vida (por ser esta tão amarga e absurda). Nessa crônica, destaca-se o absurdo da vida, as disparidades,a insensatez dos seres "humanos". Assim, busca-se a fuga (o que aparece por meio da figura da mulher- que aparece como símbolo do prazer, da luxúria ou da própria escrita- outra forma de prazer e de fuga da realidade). Pela reflexão, pela crítica proposta, pelo tom intimista (narrado em 1ª pessoa) e pelo olhar detalhista, pela descrição feita no início do texto,trata-se de uma crônica! Muito bem escrita. Parabéns, Rômulo!